Maria Imaculada

No primeiro dia de janeiro de mil novecentos e cinco, pelas três horas da tarde, um grupo de cinco homens, unidos pela amizade, subia lentamente o Monte Grande, erguido na margem esquerda do rio Douro, em frente da cidade do Porto, num extremo da freguesia de Oliveira do Douro.

Formavam-no dois sacerdotes, um lavrador, um pequeno comerciante e um modesto proprietário. Eram eles, respetivamente, o Pe. Alexandre Francisco Milheiro, coadjutor do pároco de Oliveira do Douro; o autor destas linhas; Augusto Dias da Fonte; António Joaquim Cardoso e Manuel Baptista de Aguiar.

O suor caía já das faces, apesar da temperatura fria de janeiro, e embora se estivesse apenas a meia altura da cumeada. A ascensão era difícil, e mesmo perigosa: matagais, silvados, penedos, barrancos. Metade do Monte Grande, nessa época, estava privado de qualquer vereda ou trilho. Dos cinco companheiros, só um por ali tinha andado, o Senhor Augusto que procurava servir de guia.

O ar puro e resinoso da montanha fortalecia e dava alento; o panorama era cada vez mais vasto e surpreendente. O Senhor Augusto orientava os companheiros, que volteavam pelos tojais da vertente, a esforçar-se a subir: “Por aqui; venham por aqui, e vejam a maravilha do panorama que se contempla”. O Senhor Augusto repoisava já, sentado numa grande rocha. À espera dos companheiros, enrolava como sempre o cigarro, e para o acender tirava do bolso a pederneira inseparável. Pouco depois, sorvendo fumo, enlevado na amplidão variada e serena do panorama, indicava-nos pelo nome as povoações e serranias à vista.

Vencida a última arrancada, o Senhor Augusto, homem que nas lides do campo aprendera a amar a terra e as paisagens, desvendava agora, no cimo do Monte Grande, aos companheiros em silêncio, quase recolhidos, a grandeza fina da visão: o porto de Leixões, a barrinha de Aveiro, a Falperra, o Monte Murado. – “Mais além…” E os olhos perdiam-se nos confins distantes do horizonte.

Estávamos na orla nascente do terreno pertencente ao Senhor Augusto.

– Onde se encontra a rocha em que o Senhor gravou as letras M. I.? – perguntei-lhe.

Fora o caso que o Senhor Augusto, numa das suas frequentes visitas ao autor destas linhas, atingido por grave doença, lhe declarara numa tarde de domingo do ano anterior, o seu desígnio de gravar numa das rochas do alto do Monte Grande, em homenagem a Nossa Senhora, as iniciais de Maria Imaculada. As celebrações do ano jubilar da definição deste dogma tinham dado lugar em todo o país a uma vaga imensa de entusiasmo e amor a Nossa Senhora. O Senhor Augusto sentia-se movido a dar testemunho peculiar do seu amor por Ela, mas temia o ridículo ou a irreverência da iniciativa que lhe ocorrera. Como é de prever, o amigo doente não só lhe tranquilizou o ânimo, mas louvou a ideia.

No dia 8 de dezembro de 1904, antes de a fortaleza da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, iniciar a salva de artilharia, homenagem oficial à Padroeira do Reino, o Senhor Augusto, sozinho, encontrava-se já no píncaro do Monte Grande. Ao retumbar da salva, tomou um prego resistente que levara consigo, e batendo sucessivamente com uma pedra contra uma rocha dura, gravou nela as iniciais – M. I.

À volta deste sucesso foi-se definindo, em conversas sucessivas, a conveniência e oportunidade de se erguer, no alto do Monte Grande, um monumento de piedade à Imaculada Conceição. A sugestão despertava entusiasmo em quantos dela iam tendo conhecimento. Foi-se propagando que em breve alguns entusiastas a procurariam levar a efeito, e mais tarde, de que eles se iam reunir no Monte Grande, no dia mencionado, para tomar a decisão inicial.

Dos cinco companheiros, que na tarde de janeiro de 1905 subiram ao Monte Grande, apenas o Senhor Augusto e o seu amigo doente tinham um plano concebido, junto com a resolução firme de o levar por diante. Não o podiam, todavia, fazer sem apoio e colaboração. Esperava-se que, no regresso, todos os cinco houvessem perfilhado a ideia, dedicando-se com entusiasmo à sua realização.

Nesse mesmo dia, atraídas pela notícia da insólita reunião no alto dum monte escarpado e de difícil acesso, muitas pessoas acorreram ali, ficando pela encosta ou subindo até ao alto. Predominavam as Filhas de Maria das freguesias de Oliveira do Douro, Vilar de Andorinho e Avintes, às quais apaixonou, desde a primeira hora, a ideia dum monumento à Imaculada Conceição, em lugar tão sobranceiro e majestoso. Este concurso do povo era de molde a vencer a indecisão de algum dos componentes do grupo dos cinco. Despertara nos corações amantes de Maria uma chama que parecia atestar o influxo sobrenatural. Não lhe corresponder, hesitar, seria uma indelicadeza, ou mesmo traição.

Deste modo, sentados em volta do rochedo que as iniciais – M. I.– de algum modo sagravam, tendo em frente o Porto, “Cidade da Virgem”, o grupo tomou uma decisão, que ultrapassava as suas primeiras intenções: o Monte Grande, futuro pedestal do monumento a Maria Imaculada, chamar-se-ia desde essa hora “Monte da Virgem”. O monumento seria, na margem esquerda do Douro, não só a expressão do amor a Nossa Senhora das povoações que se abrigavam em torno do Monte, mas também, decerto, uma resposta carinhosa de Maria à cidade do Porto, que lhe jurara perene vassalagem ao intitular-se “Cidade da Virgem”.

O Pe. Francisco Milheiro, no seu banco de rocha, anotou num papel a designação de “Monte da Virgem”, que a todos se afigurou inspirada, não fosse ela esquecer!

Em volta dos cinco havia já grande número de pessoas, desejosas de saber o resultado do encontro. Ao ser-lhes comunicada a nova denominação do Monte Grande, a resposta foi um coro de palmas e aclamações. Sentia-se que esse nome era penhor de certeza.

O Monte Grande já não existia: transformara-se no “MontedaVirgem”, sem formalidades legais, sem autorização de ninguém e mesmo sem ninguém o ter previsto. Esse Monte ficava desde agora sagrado à Virgem. Era já um monumento. Louvar o seu nome era glorificar Maria Santíssima. E foi por vivas prementes ao “MontedaVirgem” que terminou aquela tarde e essa reunião simples e histórica. O povo repetia essa aclamação, que nunca ali tinha ressoado, unindo-lhe o nome de Pio IX, Pontífice da Imaculada, o do Prelado da Diocese, etc.

Os circunstantes começaram a dispersar. O regresso fazia-se agora entre cânticos religiosos em louvor de Maria.

Tinha começado a peregrinação das almas ao Monte da Virgem.

Cf Pe. Luís G. de Pinho Rocha – O Monte da Virgem (As minhas recordações)-1956